7 de novembro de 2010

O Trabalho como Prática


A Aplicação dos Três Métodos Supremos

Se a sua atitude, ao fazer uma oferenda de trabalho, for basicamente bem intencionada, você vai acumular mérito. No entanto, se aplicar de forma genuína as três atitudes positivas conhecidas como os Três Métodos Supremos, uma tarefa que seja mundana, no nível externo, pode se transformar numa  paramita. Para aplicar os Métodos Supremos, comece com a purificação da sua intenção, pensando que fará o trabalho para o bem de todos os seres sencientes. Lembre-se de que não está fazendo a oferenda de trabalho para incrementar sua gratificação pessoal, conquistar maior reconhecimento ou acumular mais pontos em seu programa de milhagem. Como disse Shantideva, considere-se um utensílio e pense:


"Ofereci meu corpo ao Buda, ao Darma e à Sanga.Possa eu ser um guardião para os desprotegidos,Um guia para os viajantes que seguem pela estrada.Para os que desejam atravessar um curso d'água,Possa eu ser um barco, uma balsa, uma ponte."

Como é bastante difícil lembrar de aplicar as três atitudes positivas a cada página copiada, a cada passada  de vassoura, antes de iniciar um dia de trabalho voluntário, os alunos devem recitar a seguinte prece.

A simples lembrança do seu nome dissipa a esperança e o medo do nirvana e do samsara. Agora e até que alcance a iluminação, tomo refúgio no Buda, no Darma e na Sanga.  Acompanhando os passos de todos os bodisatvas do passado, presente e futuro, possa eu seguir o exemplo de sua atividade infinita e libertar os seres do sofrimento. Futuramente, possa eu abrir mão de tudo o que tenho, do meu tempo, do meu espaço, dos meus pertences e até mesmo dos membros do meu corpo para o bem de todos os seres. Com esse objetivo, vou começar sacrificando minha energia e meu tempo no dia de hoje para...INSERIR AQUI A TAREFA À SUA FRENTE: TIRAR CÓPIA, LIMPAR A SALA DE MEDITAÇÃO, REMOVER ENTULHO.

Para aplicar a segunda atitude positiva, evite o orgulho que possa turvar a sua boa intenção. Lembre-se que o trabalho e os frutos dele são uma ilusão. O ideal seria manter essa atitude ao longo da sua tarefa, mas provavelmente você vai se esquecer. Assim, logo após recitar a prece acima, você deve refletir da seguinte forma:

Em última análise, tudo o que eu fizer hoje será apenas um conceito. Em termos relativos, é preciso haver uma estrutura, assim como no sonho. Embora no sonho não haja direção de verdade, quando sonho que estou caindo, caio para baixo em direção à terra, não para cima em direção ao céu. No fundo, a direção não importa porque nunca houve queda alguma. Ainda assim,, a concepção de um "modo de cair" é necessária no mundo relativo do sonho. Portanto, vou fazer meu trabalho da forma mais adequada possível. 

A terceira atitude positiva é aplicada com a dedicação do mérito acumulado a todos os seres sencientes. Idealmente, você fará isso ao terminar o seu trabalho; porém, como é possível que você se esqueça, o mérito pode ser oferecido de início com o seguinte pensamento: "Dedico todas as virtudes resultantes dos meus atos a todos os seres sencientes."

"Enquanto perdurar o espaço,Enquanto existirem os seres vivos,Possa eu também ficarPara afastar as dores do mundo."

Comentário

Havia certa vez um homem que, embora pobre de bens materiais, era rico de aspirações e queria se treinar no caminho do bodisatva. Com esse objetivo, decidiu tomar os votos de bodisatva e foi ter com um mestre para fazer o pedido. O professor lhe disse que a bodhicitta pura e preciosa não pode ser cultivada com facilidade numa mente corrompida pela ganância, raiva e emoções negativas. Ele explicou que a escassez de mérito certamente impede o florescimento da bodhicitta em nosso ser. O mestre disse ao aluno aspirante que, antes de tomar o voto de bodisatva, deveria incrementar a acumulação de mérito por meio de oferendas. O homem desvalido só tinha seu trabalho a oferecer, mas como o mestre era um oleiro, o aluno lhe ofereceu um dia de trabalho amassando barro. Pelo mérito gerado por essa oferenda, o aluno pode tomar o voto de bodisatva e, por fim, tornou-se um dos mil budas desta era.

A famosa história do primeiro encontro de Milarepa com seu professor Marpa te lugar num campo. Em sua busca por Marpa, Milarepa encontrou um homem que arava um pedaço de terra. Ele disse àquele homem que pretendia pedir ensinamentos a Marpa, e perguntou como chegar até ele. Como nunca o havia visto, Milarepa não se deu conta de que era o próprio Marpa que estava a trabalhar no campo. O homem olhou-o de alto a baixo por três vezes e, então, concordou em levá-lo a Marpa. Entretanto, mandou Milarepa primeiro terminar de arar o campo, e, apontando para um jarro de vinho, disse: "Depois, beba isto." Milarepa terminou de arar e bebeu o vinho como Marpa havia instruído. Acredita-se que esses atos simples constituíram o primeiro elo auspicioso da grandiosa tarefa de Milarepa para libertação dos seres sencientes. Dessa forma, a sublime linhagem Drukpa Kagyu teve início.

Embora o termo "karma ioga", ou oferenda de trabalho, esteja associado principalmente à tradição hindu, essas histórias mostram que ele também tem seu lugar no budismo. No budismo, buscamos desfazer a teia de ilusões que nos envolve, e é isso que chamamos iluminação. Afora isso, não há iluminação alguma. Para romper essa teia de ilusões, precisamos invocar e receber as bênçãos do Buda, Darma, Sanga e Guru. Como disse Patrul Rinpoche, há três métodos para invocarmos bênçãos:

"Existem três formas de agradar e servir o professor. A melhor delas é conhecida como a oferenda de prática, e consiste em pôr em prática, com determinação, tudo o que ele ensinar, desconsiderando todas as dificuldades. A forma mediana é conhecida como serviço com o corpo e a fala, e consiste em servi-lo e fazer tudo o que ele necessite que você faça, seja de forma física, verbal ou mental. A forma inferior é por meio de oferendas materiais, o que significa agradar o professor dando-lhe bens materiais, comida, dinheiro etc."* 

Muitos de nós não temos o tempo, entusiasmo ou determinação para verdadeiramente dedicarmos nossa vida inteira à prática, como fez Milarepa. Se você possui o mérito de poder contar com essas circunstâncias, então certamente não deve desperdiçar essa oportunidade. Contudo, muitos de nós não temos esse tipo de mérito e pensamos que passar a vida toda praticando é algo fora do nosso alcance. Sendo assim, nem começamos. Há, no entanto, pequenos passos que podemos dar, como por exemplo dedicar um dia de trabalho para limpar um chão.  Mas pensamos,  "Isto é muito insignificante", e acabamos por nada fazer. Os métodos grandiosos nos parecem inatingíveis, e imaginamos que os pequenos de nada servem.

Como disse Patrul Rinpoche, se um cavalo que puxa uma carroça vir um pequeno tufo de grama na beira da estrada, vai comê-lo, se tiver oportunidade. Ele não pensa: "Ah, é só um pequeno tufo, vou esperar por uma porção maior."  Da mesma forma, devemos acumular mérito sempre que houver chance de fazê-lo. Quando aplicamos a motivação correta, os meios para acumulação de mérito nos cercam por todos os lados, especialmente se formos praticantes do Mahayana. Nos templos Zen, os mestres instruem os alunos a limpar os vasos sanitários vez após vez, mesmo que já estejam imaculadamente limpos. A virtude está na ação, não no objetivo.

A Filosofia da Oferenda de Trabalho

Se aplicarmos os Três Métodos Supremos a tudo que fizermos  mesmo a algo tão corriqueiro como tirar cópia de uma pilha de papéis para um centro de darma  não só vamos acumular mérito, como aquela tarefa efetivamente passa a ser uma paramita. Imagine só: o ato de tirar cópia como uma virtude consumada. Talvez você se pergunte: "Como é possível que tirar cópia venha a iluminar todos os seres sencientes?" É óbvio que um centro budista não precisará de você para tirar cópia das palavras de um político malandro. É mais provável que o texto seja algo relacionado ao darma, algo que, de uma forma ou de outra, vise o benefício dos seres sencientes. Se dez pessoas lerem uma prece da qual você  tirou cópia, e uma delas tiver um entendimento genuíno do darma, mesmo que por uma fração de segundo, a semente do estado búdico estará sendo plantada. E tudo por causa das suas cópias. A acumulação de mérito não se restringe de forma alguma a atos tradicionais como acender 100.000 lamparinas ou trabalhar para um centro de darma. Se você for um estudante do Vajraiana e seu mestre mandar você tirar cópia das palavras de um político malandro 200.000 vezes, a conclusão dessa tarefa juntará ainda mais méritos. No entanto, nós seres humanos somos apegados à forma, e é mais fácil aceitarmos que limpar o chão de um templo acumula méritos. Então, que seja assim!

*RINPOCHE, Patrul. Como seguir o professor. In:_______. As palavras do meu professor perfeito. Porto Alegre: Makara, 2008. p. 240.