21 de julho de 2011

Como construir uma Sangha


Toda vez que vejo uma pessoa desprovida de raízes, eu a considero um fantasma faminto. Na mitologia budista, o termo “fantasma faminto” é usado para designar uma alma errante, extremamente sedenta e esfomeada, mas cuja garganta é por demais estreita para que a comida ou a bebida possam passar. Durante a lua cheia do sétimo mês lunar, no Vietnã, oferecemos comida e bebida aos fantasmas famintos. Sabemos que é difícil para eles aceitarem nossas dádivas, de forma que entoamos um Mantra para Alargar a Garganta dos Fantasmas Famintos. Existem tantos fantasmas famintos, e nossas casas são tão pequenas, que temos que fazer essas oferendas no jardim.
Os fantasmas famintos anseiam por serem amados, mas por mais que os amemos e cuidemos deles, eles não tem capacidade de receber o nosso afeto. Eles podem, em princípio, entender que existe beleza na vida, mas são incapazes de entrar em contato com ela. Parece que algo se interpõe em seu caminho, impedindo-os de entrar em contato com esses fatores vivificantes e curativos da vida. Eles só querem esquecer de que existe vida, de forma que se voltam para o álcool, para as drogas ou para o sexo, a fim de que estes os ajudem a esquecer. Se dissermos: “Não façam isso”, eles não ligarão a mínima. Já ouviram bastantes advertências. Eles precisam de algo em que acreditar, algo que lhes prove que a vida tem sentido. Todos precisamos de algo em que acreditar. 
Para ajudar um fantasma faminto, temos que ouvi-lo com toda a atenção, proporcionar-lhe uma atmosfera familiar e de irmandade, e então ajudá-lo a encontrar algo bom, belo e verdadeiro em que acreditar.
Uma tarde, em Plum Village, vi uma mulher que parecia exatamente um fantasma faminto. Plum Village, naquela época do ano, era muito linda – as flores desabrochavam e todo mundo sorria – mas ela não via nada. Pude sentir o seu sofrimento e a sua dor. Ela caminhava sozinha e parecia estar morrendo de solidão a cada passo. Viera a Plum Village para estar em companhia de outras pessoas, mas quando chegou não tinha capacidade de ficar na companhia de ninguém.
Nossa sociedade gera milhões de fantasmas famintos, pessoas de todas as idades – já vi alguns com dez anos incompletos – completamente desprovidas de raízes. Nunca foram felizes em casa, e não tem nada em que acreditar e nada a que pertencer. Essa é a principal enfermidade do nosso tempo. Sem ter nada em que acreditar, como sobreviver? Como encontrar energia para sorrir ou para entrar em contato com uma tília ou com um lindo céu? Você está perdido, e vive sem o menor senso de responsabilidade. O álcool e as drogas estão destruindo o seu corpo.

Nosso governo acredita que a forma de lidar com os problemas da droga no país é tentando evitar que sejam contrabandeadas e prendendo os traficantes e os usuários. Mas a disponibilidades das drogas representam um aspecto secundário do problema. 
A causa principal reside na falta de sentido da vida de tanta gente, na ausência de algo em que acreditar.
Se você abusa das drogas e do álcool é porque não está feliz – você não aceita a si mesmo, nem à sua família, nem à sua sociedade, nem à sua tradição e quer renunciar a tudo. 

Temos que descobrir um meio de reconstruir as bases da nossa comunidade e oferecer às pessoas algo em que acreditar. As coisas que lhe foram oferecidas no passado podem, talvez, ter sido muito abstratas e apresentadas de forma por demais coercitiva. Talvez você tenha pensado que a ciência traria bem estar à sociedade, ou que o marxismo traria justiça social, e suas crenças foram estilhaçadas. Mesmo o Deus para o qual você rezava – o mesmo que o presidente Bush invocou para ajudar os Estados Unidos a derrotar o Iraque – era muito pequeno. Muitas das pessoas que representavam suas tradições não vivenciaram, elas mesmas, os valores mais profundos dessas tradições; apenas falavam em nome dessas tradições e tentavam forçar você a acreditar nelas, e você se sentiu afastado.

A consciência é algo em que podemos acreditar. Ela consiste na nossa capacidade de perceber o que está ocorrendo no momento presente. Acreditar na consciência é seguro e de modo algum abstrato. Quando bebemos um copo de água e sabemos que estamos bebendo um copo de água, ali está presente a consciência. Quando sentamos, andamos, levantamos ou respiramos, e sabemos disso, entramos em contato com as sementes da consciência que existem dentro de nós, e depois de alguns dias nossa consciência ficará mais forte. A Consciência é um tipo de luz que nos mostra o caminho. É o Buda vivo dentro de cada um de nós. A consciência faz nascer a compreensão, o despertar, a compaixão e o amor.

Não só os budistas, mas também os cristãos, os judeus, os muçulmanos e os marxistas aceitam que cada um de nós tem a capacidade de ser consciente, que cada um de nós traz dentro de si a semente da consciência. Se soubermos como regar essa semente, ela crescerá, e nós reviveremos, aptos a gozar as maravilhas da vida. Conheço muitas famílias que estiveram a ponto de se romper e cuja harmonia foi restaurada graças à prática da conscientização. Por isso, se você me perguntar no que eu acredito, responderei que acredito na consciência. A fé é o primeiro dos cinco poderes pregados pelo Buda. O segundo é a energia e o terceiro, a consciência; o quarto, a concentração e o quinto, a compreensão. Se você não tiver fé, se não acreditar em nada, não terá energia. É por isso que a fé suscita a energia. 

Um bom amigo é alguém que pode inspirar fé.

Quando tocamos o chão, podemos sentir a estabilidade da Terra. Podemos também sentir a estabilidade do sol, do ar e das árvores – podemos contar que o sol nascerá amanhã e que as árvores estarão diante de nós. Temos que depositar a nossa fé naquilo que é estável. Quando construímos uma casa, erguemo-la sobre um terreno sólido. 

Quando dizemos: “Eu procuro refúgio no sangha”, significa que depositamos nossa fé numa comunidade de companheiros praticantes que é sólida. Um professor, assim como os seus ensinamentos, pode ser importante, mas os amigos constituem o elemento mais importante da prática. É difícil, ou mesmo impossível, praticar sem um sangha.
Quando olhamos profundamente para descobrir o nosso verdadeiro “eu”, constatamos que aquilo que temos chamado de eu é constituído totalmente de elementos que nada têm a ver com o “eu”. Nosso corpo e nossa mente têm suas raízes na sociedade, na natureza e nas pessoas que amamos. Alguns de nós podem não gostar de falar ou de pensar em suas raízes, por terem sofrido muita violência por parte da sua família ou da sua cultura. Queremos deixar essas coisas para trás e buscar algo novo. É fácil compreender porque nos sentimos assim, mas quando nos habituamos a olhar profundamente, descobrimos que nossos antepassados e nossas tradições subsistem em nós. Podemos estar revoltados com eles, mas mesmo assim eles estão presentes, incitando-nos a voltar atrás e entrar em contato com suas dores e suas alegrias. Não temos outra alternativa senão a de entrar em contato com as raízes que estão dentro de nós. A partir do momento em que estabelecemos essa conexão, uma mudança ocorre dentro de nós, e nossas dores começam a se desvanecer. 
Compreendemos que somos um elemento que integra a seqüência de nossos antepassados, e também somos o caminho para as gerações futuras.

Não podemos jogar fora uma coisa e correr atrás de outra. Seja a nossa tradição cristã, judaica, islâmica ou outra qualquer, temos que analisar os caminhos trilhados pelos nossos antepassados e descobrir na tradição os melhores elementos, tanto para nós como para nossos filhos. 

Temos que viver de forma que os nossos ancestrais, que existem dentro de nós, possam se libertar. No momento em que pudermos proporcionar alegria, paz, liberdade e harmonia aos nossos antepassados, proporcionaremos alegria, paz, liberdade e harmonia a nós mesmos, aos nossos filhos e aos filhos de nossos filhos, ao mesmo tempo.

Muitas pessoas sofreram abusos ou maus-tratos por parte de seus pais, e muitas outras foram rejeitadas ou severamente criticadas por eles. Agora, em suas consciências armazenadoras, essas pessoas têm tantas sementes de infelicidade que não querem nem mesmo ouvir o nome do pai ou da mãe. Quando encontro alguém assim, sempre ofereço a meditação da criança de cinco anos, que consiste numa massagem de conscientização.
“Inspirando, vejo-me como uma criança de cinco anos de idade. Expirando, sorrio para esta criança que existe dentro de mim”. Durante a meditação, você procura se ver como uma criança de cinco anos. Se puder olhar em profundidade para essa criança, você verá que é vulnerável e que pode ser ferido facilmente. Um olhar severo ou um grito podem causar formações internas na sua consciência armazenadora. Quando seus pais brigam e gritam entre si, os seus cinco anos de idade recebem muitas sementes de sofrimento. Ouvi jovens dizerem: “O presente mais precioso que meus podem me oferecer é a sua própria felicidade’. Por viver infeliz, seu pai o fez sofrer muito. Agora você está se vendo como uma criança de cinco anos de idade. Quando você sorrir para essa criança que existe dentro de você, sorria com compaixão. “Eu era tão jovem e delicado e fui agraciado com tanta dor”. 

No dia seguinte, eu aconselharia a fazer a seguinte prática: “Inspirando, vejo meu pai como uma criança de cinco anos de idade. Expirando, sorrio para essa criança com compaixão”. Não estamos acostumados a vermos os pais como uma criança de cinco anos. Pensamos neles como tendo sido sempre pessoas adultas, severas e dotadas de grande autoridade. Não dedicamos tempo algum para ver nosso pai como um menino jovem e delicado, que também podia ser facilmente magoado por outras pessoas. De forma que a prática consiste em visualizar o seu pai como um menino de cinco anos – frágil, vulnerável e facilmente ferido. Se ajudar, você pode abrir o álbum de família e estudar a imagem do seu pai quando menino. Quando estiver apto a visualizá-lo como uma criança vulnerável, compreenderá que ele pode ter sido vítima do pai dele, seu avô. Se ele recebeu de seu pai muitas e muitas sementes de sofrimento, é claro que ele não saberá tratar bem o filho. Então ele o fez sofrer, e o círculo do samsara continua. Se você não fizer exercícios de conscientização, fará exatamente o mesmo com seus filhos. A partir do momento em que enxergar o seu pai como uma vítima, a compaixão nascerá no seu coração. Quando sorrir para ele com compaixão, você começará a introduzir na sua dor a conscientização e a compreensão. Se praticar dessa forma durante muitas horas ou muitos dias, a raiva que você sente dele desaparecerá. Um dia, você sorrirá pessoalmente para seu pai e o abraçará, dizendo: “Eu o compreendo, pai. Você sofreu muito durante a sua infância”.

Através da meditação, redescobrimos o valor de nossas famílias e nossas raízes, incluindo aqueles valores soterrados sob anos de sofrimento. Cada tradição guarda algumas pedras preciosas, frutos de milhares de anos de experiência. Agora elas vieram a nós, e não podemos ignorá-las ou negá-las. Mesmo a comida que comemos, encerra em si nossos ancestrais e nossos valores culturais. Como podemos dizer que não temos nada em comum com a nossa cultura? Podemos descobrir maneiras de honrar as nossas tradições, como também outras tradições. A meditação nos ensina o caminho para remover barreiras, limites e discriminações, a fim de distinguir dentro do “eu” os elementos que não o integram. Por meio da prática, podemos remover os perigos da separação e criar um mundo onde nossos filhos possam viver em paz.

As divisões entre pessoas, nações e crenças religiosas muito contribuíram durante séculos para nossa infelicidade. Temos que realizar a nossa prática de modo a libertar essas tensões dentro de nós entre as pessoas, para que possamos nos expandir e nos comprazer uns com os outros, como irmãos e irmãs. Pouco importa a tradição em que você realiza a sua prática. Se você chegar à compreensão da natureza das relações entre os seres, essa é a verdadeira meditação.

Algumas pessoas, alguns fantasmas famintos, tornaram-se tão desenraizados que é realmente impossível para nós pedir-lhes que retornem às suas próprias raízes pelo menos por enquanto. Temos que ajudá-los, oferecendo-lhes uma alternativa, uma segunda oportunidade. Pessoas desse tipo vivem à margem da sociedade, e, como árvores que não tem raízes, não podem absorver o alimento de que necessitam. Encontrei pessoas que meditavam há vinte anos e eram ainda incapazes de se transformar, por serem totalmente desprovidas de raízes. A prática consiste em ajudá-las a conseguir algumas raízes, para encontrar um lugar onde possam se fixar.

Na Ásia fizemos um esforço no sentido de moldar as práticas comunitárias, baseando-as na família. Chamávamos uns aos outros de irmãos no dharma, irmãs no dharma, tios no dharma, tias no dharma, e chamávamos o nosso mestre de pai no dharma ou mãe no dharma. As crianças em Plum Village me chamam de “Mestre Vovô”. Sempre me aproximo delas como um avô, não como alguém estranho à família. 

Um centro de meditação deve proporcionar esse tipo de calor humano, esse tipo de irmandade familiar que continuará a nos alimentar.
Imagens do Centro Budista Shenphen Choling 

No contexto de uma família espiritual, temos uma oportunidade real, uma segunda chance de nos enraizarmos. Os membros do sangha estão cientes de que estamos em busca de amor, e eles no tratam de forma a termos a melhor oportunidade de nos fixar nessa segunda família. 
Dão o melhor de si para cuidar bem de nós, agindo, no que nos diz respeito, como irmãos e irmãs. Depois de três ou seis meses, nasce um sorriso em nossos lábios, quando alguma relação sincera entre nós e outro membro do sangha é vista e reconhecida, pois eles sabem que estamos começando a fazer progresso e que a transformação será possível. Novas raízes estão começando a despontar.

Relações interpessoais constituem a chave para sermos bem sucedidos na prática. Sem uma relação íntima e profunda com pelo menos uma pessoa, é improvável que ocorra essa transformação. Com o amparo de uma pessoa, você tem estabilidade e apoio e, mais tarde, pode chegar a uma terceira pessoa e, finalmente, vir a ser um irmão ou uma irmã para todos no sangha. Você demonstrou vontade e capacidade para viver em paz e harmonia com todos os membros do sangha.

É meu profundo desejo que comunidades praticantes do Ocidente se organizem dessa forma, como famílias, rodeadas de uma atmosfera amistosa, calorosa, a fim de que as pessoas sejam bem sucedidas em sua prática. 
Um sangha onde cada pessoa é como uma ilha que não se comunica com os demais, não ajuda em nada. É apenas uma série de árvores sem raízes. A cura e a transformação não podem acontecer nessa atmosfera. Precisamos estar enraizados se quisermos ter a oportunidade de aprender e praticar a meditação.
A família nuclear é uma invenção bem recente. Além do pai e da mãe, existem apenas um ou dois filhos. Às vezes, numa família tão pequena, não existe ar suficiente para se respirar. Quando surgem problemas entre os pais, toda a família sente os efeitos. A atmosfera da casa é pesada, e não há nenhum lugar para onde fugir. Algumas vezes a criança pode ir ao banheiro e trancar a porta só para ficar sozinha, mas ainda não há saída; a atmosfera pesada invade também o banheiro. Assim, a criança cresce cheia de sementes de sofrimento e depois a transmite a seus filhos.
Antigamente, tios, tias, avós e primos viviam todos juntos. As casas eram rodeadas de árvores, sob cuja sombra podiam pendurar redes e organizar piqueniques, e as pessoas não enfrentavam muitos dos problemas que enfrentam hoje. Quando os pais tinham problemas, as crianças podiam sempre dar uma fugida, indo para junto de um tio ou de uma tia. Elas ainda contavam com alguém que olhasse por elas, de forma que a atmosfera não era tão ameaçadora. Acredito que as comunidades que cultivam a prática de viver conscientemente podem substituir nossas grandes famílias antigas, porque quando chegamos a elas, conhecemos muitos tios, tias e primos que podem nos ajudar. 

Pertencer a uma comunidade em que as pessoas de reúnem como irmãos e irmãs no dharma, e onde as crianças têm muitos tios e tias, é uma coisa maravilhosa. Temos que aprender a criar esse tipo de família. Temos que considerar os outros membros da comunidade como nossos irmãos e irmãs. Isso já é uma tradição no Oriente, e pode ser aprendido no Ocidente. Podemos extrair o melhor das duas culturas.
Aqui no Ocidente, tenho visto muitos pais separados. Pais separados podem também beneficiar-se com a prática de uma comunidade. Eles podem pensar que é necessário tornar a casar para ter mais estabilidade, mas eu não concordo. Você pode ter mais estabilidade agora, sozinho, do que tinha quando estava com um companheiro. Uma outra pessoa que chega à sua vida pode destruir a estabilidade que você tem agora. É mais importante buscar refúgio em si mesmo, reconhecendo a instabilidade que você já tem. Ao fazê-lo, você se torna ainda mais sólido, e transforma a você mesmo num refúgio para seu filho e para seus amigos. 

De forma que, em primeiro lugar, você precisa tornar a você mesmo uma pessoa estável e abrir mão da idéia de que você não pode ser você mesmo, a menos que “aquele alguém” esteja com você. Você é suficiente. Quando você se transforma em um confortável eremitério, dotado de ar, de luz e ordem no seu interior, você começa a sentir paz, alegria e felicidade e a ser alguém em que os outros podem confiar. Seus filhos e todos os seus irmãos e irmãs no dharma podem confiar em você.

Portanto, antes de mais nada, regresse à sua morada solitária e arrume as coisas de dentro para fora. Você pode se beneficiar com a luz solar, com as árvores e com a Terra. Você pode abrir as janelas para que esses elementos saudáveis e estáveis entrem, e para que você se torne uma coisa só com o seu meio circundante. Quando os fatores desestabilizantes tentarem entrar na sua morada, feche as janelas e barre-lhes a entrada. Quando trovoadas, ventos fortes ou um grande calor quiserem se introduzir, não permita que entrem. Ser um refúgio para si mesmo constitui uma prática básica. Não confie em pessoas que você não conhece bem, pessoas que podem ser instáveis. Volte-se para si mesmo e procure refúgio na sua própria morada.

Se você é mãe e está criando seu filho sozinha, tem que aprender a fazê-lo. Você tem também que ser pai; caso contrário, continuará a precisar de alguém para desempenhar o papel de pai para seu filho, e você perderá a sua soberania, perderá a sua morada. Se puder dizer: “Posso aprender a ser mãe e pai para o meu filho. Posso vencer por mim mesma, com a ajuda de meus amigos e de minha comunidade” -, isto é um bom sinal.
O amor do pai é diferente do amor da mãe. O amor materno é de certo modo incondicional. Você é a criança da sua mãe; é por isso que você é amado por ela. Não existe outra razão. Uma mãe procura usar o corpo e a mente para proteger essa parte sensível, vulnerável, de si mesma. Ela tem a tendência de considerar o filho como uma extensão de si mesma, como se fosse ela mesma. Isso é bom, mas pode criar problemas no futuro. Ela tem que compreender, gradualmente, que seu filho ou sua filha é uma pessoa distinta.
O amor paterno é um pouco diferente. O pai parece dizer: “Se você fizer assim, terá o meu amor; se não o fizer, não terá”. É um tipo de acordo. Eu também tenho essa característica. Sou capaz de disciplinar meus discípulos e também tenho a capacidade de amá-los como uma mãe. Sei que não é fácil para uma mãe ser pai, mas se você tiver um bom sangha, e boas relações nesse sangha, outros membros de seu sangha podem vir a ser um tio ou uma tia para seu filho. Numa comunidade que siga a prática, pais sozinhos podem ser auto-suficientes. A pessoa é capaz de desempenhar tanto o papel de mãe como o de pai, e ainda beneficiar-se com a ajuda de outros adultos.
No Ocidente, é grande o número de pais sozinhos. Precisamos de retiros e seminários para discutir a melhor maneira de criar nossos filhos. Não aceitamos a forma antiga de criá-los. Mas, ao mesmo tempo, não desenvolvemos completamente formas modernas de criação. Precisamos nos basear na nossa própria experiência e prática e acrescentar à vida no núcleo familiar. Quando a vida do núcleo familiar se combina com a vida de uma comunidade desse tipo, um sangha pode ter muito sucesso. Você pode trazer os filhos a esse centro de prática muitas vezes, e tanto você como eles sairão beneficiados pela atmosfera lá reinante. O centro também se beneficiará com a sua presença. As crianças são jóias que podem contribuir para a realização da prática. Se estão felizes, todos os pais e não pais apreciarão a prática. 

É uma alegria encontrar-nos no meio de um sangha em que as pessoas estão, juntas, realizando bem a prática. A forma de andar, de comer e de sorrir de cada um pode se converter numa real ajuda para nós. Ela está andando por mim, eu estou sorrindo por ela, e o fazemos juntos, como um sangha. Praticando juntos, assim, podemos esperar que se realize uma verdadeira transformação dentro de nós. Não temos que praticar intensamente ou forçar a nós mesmos. Temos apenas que procurar participar de um bom sangha no qual as pessoas sejam felizes, vivendo intensamente cada momento, e a transformação advirá naturalmente, sem muito esforço.
Penso que a construção de um sangha é a arte mais importante que temos que aprender. Mesmo que sejamos ótimos em meditação e bem versados nos sutras, se não soubermos como construir um sangha, não poderemos ajudar os outros. Temos de construir um sangha que se seja feliz, onde a comunicação seja franca. Temos de cuidar de cada pessoa, atento às suas dores, às suas dificuldades, às suas aspirações, aos seus temores e esperanças, para torná-las mais felizes e descontraídas. Isso requer tempo, energia e concentração.
Imagens do Centro Budista Shenphen Choling 
Todos nós precisamos de um sangha. Se ainda não temos um, deveríamos despender nosso tempo e nossa energia construindo-o. Se você é psicoterapeuta, médico, assistente social ou batalhador pela paz, ou se estiver trabalhando na área ambiental, você precisa de um sangha. Sem um sangha, você não terá amparo suficiente, e em breve perderá as forças. Um psicoterapeuta pode selecionar entre os pacientes aqueles que superaram suas dificuldades, e que o reconhecem como amigo, como irmão, e organizar um grupo de pessoas para atuar como um sangha, para estar juntos, em paz e alegria dentro de uma atmosfera familiar. Você precisa de que irmãos e irmãs participem da prática para serem amparados e apoiados. Um sangha pode ajudá-lo nos momentos difíceis. Sua capacidade de ajudar as pessoas pode ser reconhecida, olhando aqueles que estão ao seu redor.
Tenho encontrado psicoterapeutas que não são felizes com suas famílias, e duvido muito que, se precisarmos deles, eles nos possam ajudar. Propus-lhes que formassem um sangha. Entre os membros desse sangha existem pessoas que tiraram muito proveito e que se recuperaram de sua doença, tornando-se amigas do terapeuta.
O sangha tem por finalidade o encontro e a prática em conjunto – respirando, vivendo conscientemente, com paz, alegria, bondade e amor. Isso representaria para o terapeuta um manancial de amparo e de consolo. Não somente terapeutas e pessoas que se dedicam à meditação têm que aprender a arte de construir um sangha, mas todos nós. Não acredito que você possa ir muito longe sem um sangha. Meu sangha cuida de mim. Qualquer conquista que se testemunhe no sangha não pára e me dá mais força.

Para construir um sangha, comece por encontrar um amigo que goste de fazer meditação com você, sentado ou andando, de recitar os preceitos, de fazer meditação durante o chá ou de conversar a respeito. Outros, provavelmente, gostarão de acompanhá-los, e seu pequeno grupo pode passar a se reunir semanalmente ou mensalmente na casa de alguém. Alguns sanghas conseguem mesmo um pedaço de terra e se mudam para o campo para fundar um centro de retiro. É claro que seu sangha inclui também árvores, pássaros, a almofada de meditação, o sino e mesmo o ar que você respira - todas as coisas que o apóiam na prática. Estar entre pessoas que praticam sinceramente juntas, constitui uma rara oportunidade. O sangha é uma verdadeira jóia.

Imagens do Centro Budista Shenphen Choling 
O objetivo consiste em organizar o sangha de forma a que seja o mais agradável para todos. Você jamais encontrará um sangha perfeito. Um sangha imperfeito já basta. Em vez de se queixar demais do seu sangha, faça o melhor que puder para se transformar num bom elemento do sangha. Aceite o sangha e construa sobre ele. Quando você e sua família se dedicam a fazer as coisas conscientemente, vocês são um sangha. Se houver um parque próximo à sua casa, onde você possa levar seus filhos para caminhar meditando, o parque passa a integrar o seu sangha.
Um sangha representa também uma comunidade de resistência, resistindo à velocidade, à violência, às formas insalubres de vida que prevalecem na nossa sociedade. A conscientização tem por finalidade proteger a nós mesmos e aos outros. Um bom sangha pode conduzir-nos à harmonia e à conscientização.
A substância prática é o mais importante. As formas podem ser adaptadas. Durante um retiro em Plum Village, um padre católico me perguntou: “Thây, compreendo o valor da prática consciente. Experimentei a alegria, a paz e a felicidade que ela oferece. Gosto dos sinos, das meditações durante o chá, do silêncio às refeições e das caminhadas. Minha dúvida é como continuarei a praticar depois que voltar à minha igreja?”
Perguntei-lhe: “Existe um sino na sua igreja?”.
“Sim”, ele me respondeu.
“Você toca esse sino?”.
“Toco”.
“Então, por favor, toque o sino da mesma forma que o tocamos aqui. Na sua igreja, vocês comem juntos? Tomam chá com biscoito?”
“Tomamos”.
“Por favor, faça-o como o fazemos aqui, conscientemente. Não existe nenhum problema”.

Quando vocês voltam às suas tradições, quando voltam ao seu sangha, ou instituem um novo sangha, podem apreciar fazer tudo o que fazem, em plena consciência. Não é necessário apartar-se da sua tradição ou da sua família. Mantenham todas as coisas tais quais são e introduzam a consciência, a paz e a alegria no seu contexto.

  Seus amigos, através de vocês, reconhecerão o valor da prática – não através das palavras, mas através do exemplo de vocês.