Há várias maneiras de penetrar no
Darma. Este processo que descrevemos agora é o que começa com a própria
meditação. Ele pertence ao Mahayana, é um método que combina estudo,
instrução e meditação, está baseado nos sutras. Não há nenhuma prática
de visualização, recitação de mantras, etc. - pelo contrário, é um
processo analítico que utiliza a meditação como instrumento. Utilizamos
de ponta a ponta todos os processos cognitivos - nenhuma prática ligada a
qualquer yidam ou preces, sadhanas, enfim, nenhum elemento do
vajrayana. Não utilizamos nenhum elemento construído, é um processo que
busca diretamente lucidez sem nenhum elemento intermediário que não a
cognição e serenidade.
No vajrayana criamos para depois
dissolver, aqui não há visualização de qualquer Yidam, ou terra pura,
apenas o nobre e sereno sentar. Através do efeito combinado da meditação
silenciosa e do processo analítico, removemos todos os elementos até
reconhecermos o aspecto incessante da natureza não-construída.
É
um processo de purificação gradual: pela lucidez removemos
progressivamente nossa fixação ao que foi construído. Em nenhum momento é
necessário ter fé ou qualquer outra crença. Não é um processo
intelectual, no qual geramos uma teoria. Também não privilegiamos nenhum
estado mental especial, seja ele instrumento do caminho ou não, e
progressivamente ultrapassamos os diversos estados mentais, produtos de
nosso próprio carma eliminando a fixação. É o caminho de dissolução das
fixações ao que é virtual.
Não consideramos nenhum elemento puro
ou impuro, esta análise não pertence ao processo, mas reconhecemos
incessantemente liberdades que não víamos antes. A palavra essencial é
liberdade. Olhamos os processos mentais e emocionais não no sentido de
localizar o que é bom ou ruim, mas no sentido de eliminarmos as marcas
que produzem limitação em nossa liberdade. Quando removemos os
obstáculos a visão se amplia, é apenas isto. Não é que existam elementos
bons e ruins de fato. A visão Hinayana funciona de outro modo, o bom e o
ruim é que legitimam uma visão de mundo. Porém, na visão Mahayana não
temos panoramas que possam fixar visões finais e elementos positivos e
negativos. A visão que temos do mundo está determinada por fatores sutis
e estes fatores é que de fato nos aprisionam. Focamos, então,
diretamente o que aprisiona, não os elementos bons e ruins criados pela
visão condicionada operando desde estes fatores sutis.
Quando
olhamos um filme, há coisas boas e ruins, mocinhos e bandidos, e nos
aliamos automaticamente aos elementos que nos são simpáticos. De dentro
do contexto do filme dizemos: "é mais adequado me conectar aos
personagens positivos", não quero ligar-me aos assassinos, ladrões,
estupradores, etc. Como iríamos nos ligar a eles? Assim é a visão
Hinayana, operando segundo este enfoque, a mente raciocina segundo o
roteiro do filme, aceita a estória e tenta seguir os valores positivos.
Na visão Mahayana percebemos que há uma tela e uma luz que é projetada,
então podemos nos livrar do próprio contexto proposto pelo roteiro do
filme, reconhecemos que há um roteiro e como a experiência de realidade é
criada e passa a dominar nossas emoções e dirigir nossa mente. Vemos
que nossa identidade está claramente além daqueles personagens.
Na
nossa vida cotidiana é o mesmo. As experiências também obedecem fatores
sutis que não reconhecemos. Devido a isto, por vidas infindáveis
operamos dentro daqueles padrões submetidos a experiências específicas
de mundos "virtuais" particulares. A liberação não é estar num lugar
seguro dentro do filme, um lugar limpo e bom, mas ver que o processo do
filme é construído, é virtual, não é sólido, e, especialmente, que
carrega em si liberdades reais, ainda que ocultas e insuspeitadas aos
que se fixam na estória. As liberdades são o foco.
Mais adiante
desenvolvemos a capacidade de penetrar livremente no contexto do "filme
incessante da vida" para ajudar os seres a reconhecer liberdades reais,
ocultas pela limitação de sua experiência convencional.
Essencialmente
o que fazemos é atravessar esses diferentes panoramas sem ficar cegos
pelas visões que surgem. Nosso objetivo é encontrar a estabilidade e a
natureza não-construída que está além das aparências. Podemos brincar
com isso em uma metáfora: por maiores que sejam os incêndios e explosões
nos filmes, a tela nunca queima. A tela é capaz de sustentar as maiores
monstruosidades e permanecer incólume, é impossível atingi-la. Assim é
nossa própria natureza básica. Conectados ao filme, temos toda a
experiência de transitoriedade e nos sentimos inseguros.
No
avanço deste processo de retirada de solidez das aparências internas e
externas pela prática de meditação, num determinado ponto o próprio
personagem que o vive acaba desaparecendo. Não há como isso não
acontecer, o personagem é um processo construído e a experiência de
liberdade frente a ele acaba aparecendo. Num certo ponto cessa a
experiência de alguém que galga etapas ou que passa por essas
experiências.
A palavra "mundo" é apenas mais uma manifestação
dessa separatividade. Há um ponto onde todas as perguntas sobre deus,
iluminação, espaço, tempo, somem. Quanto mais avançamos nos aspectos
sutis desse processo de dissolução, menos as teorias, compreensões e
cognições fazem sentido. Essas palavras estão dentro da busca de uma
compreensão de "como surgiu o mundo", mas, observe, essa pergunta traz
dentro de si mesma a noção de separação. É a pergunta de alguém que
observa algo separado de si.
Com o progresso da prática esses
elementos eventualmente desaparecem. Na linguagem dos mestres: é como
uma névoa que se dissipa, ninguém sabe para onde foi; é como um eco, não
há origem para aquele som, mas ele surge. Quando procuramos a origem,
não há alguém que tenha produzido o som. O efeito existe, mas não há uma
identidade que o produza.
A experiência das vidas anteriores, os
carmas acumulados, as experiências de mundo, isso tudo é apenas uma
faísca. Surgem e desaparecem. Todas as complicações também são assim.
Num momento surge samsara inteiro que dura por éons, mas isso nada mais é
que uma faísca atmosférica na eternidade. É como um sonho. Parece
denso, pesado, mas quando a pessoa acorda, não tem nenhuma importância.
Ali dentro, aquilo é vital, muito importante. É como açúcar na água, não
sabemos para onde foi. É como uma frágil gota de orvalho. Também é um
halo ao redor do sol - surge não se sabe de onde, e desaparece não se
sabe como. Tem uma aparência, mas não tem solidez. É como um rosto visto
em uma nuvem. Está lá, podemos achar auspicioso, podemos achar bonito,
podemos achar parecido com o pai, com o avô. Podemos acreditar que é uma
mensagem, mas é apenas um rosto numa nuvem. Também como um arco-íris -
surge magicamente e se dissolve magicamente.
Quando cruzamos por
esse ponto, cessa a separatividade e percebemos todas as aparências
como experiências de aparências. Vemos que toda a densidade anterior
existiu inseparável de nossa ingenuidade. Não é boa nem má, é
ingenuidade. Quando esse ponto é cruzado, então todos os elementos se
transformam. A impermanência, por exemplo, deixa de ser um infortúnio.
Passa a ser evidência da liberdade. Se as coisas fossem permanentes, não
haveria mudança, não haveria liberdade. A evidência da não-solidez de
todas as coisas é a própria evidência de liberdades ocultas aos olhos
ingênuos. Essa é a descrição do caminho Mahayana que utiliza a meditação
como processo principal.
(Isto foi falado pelo Lama Padma
Samten no Cebb - Caminho do Meio, Viamão, na primavera de 1999,
transcrito de forma direta e revisado por Padma Dorje e aprovado pelo
próprio lama.)
Visão do Caminho da Meditação Há
três formas de introdução ao Darma pelo caminho da meditação. A
primeira diz respeito à motivação, a segunda diz respeito à felicidade, e
a terceira diz respeito à descrição do caminho espiritual nos termos
utilizados pelos mestres.
MotivaçãoPara
quem esta abordagem é útil? Para os seres em perigo iminente ou
sensação de desgraça, ele não funciona. Por exemplo, para alguém que é
atropelado, se esvaindo numa estrada, não adianta dizer "sente em
meditação" - não vai funcionar. Outras práticas podem ser boas nesse
caso, P'howa ou alguma outra, mas essa não vai funcionar. Ou a pessoa
está faminta, sem comer a dois dias, e chega a um centro de Darma: "hoje
você vai receber instruções Mahayana". Não serve, é claro. Ou uma
pessoa que levou um tiro, por exemplo. Elas querem um prato de comida,
querem cuidados médicos, nada de meditação para elas. Quando olhamos em
volta vemos muitos seres com a experiência de atropelamento,
metaforicamente falando. Nós mesmos, entre um atropelamento e outro,
entramos aqui. Somos realmente felizardos...
Depois há seres que
não estão soterrados sob quatro montanhas, eles não têm sensação de
desgraça, apenas propósitos muito definidos. Estão sobre o domínio de um
conjunto de idéias que os impede de avançar, todo o tipo de ideologias e
fanatismos. Isto inclui seres que estão sobre o domínio de outros.
Eventualmente os maridos as esposas, namorados, pais, mães, filhos, as
pessoas próximas a nós, estão em situações desse tipo.
Depois há
os seres que estão no reino dos deuses. Se o sofrimento impede a
prática dos seres sob quatro montanhas que experimentam o inferno, a
felicidade dos seres na condição do reino dos deuses também a
impossibilita. Tanto a felicidade quanto o sofrimento nos aprisionam,
nos tornam insensíveis ao processo de meditação. Curiosamente isso
inclui processos internos e externos de felicidade, ou seja, inclui
também os estados meditativos equivocados.
Então para o quarto
conjunto de seres, aqueles que conscientemente desejam a felicidade de
um tipo mais permanente, e que conscientemente desejam se afastar do
sofrimento, para esses seres é dirigido o ensinamento.
Na
conclusão da explicação sobre a motivação, incluímos a perspectiva
Mahayana ampla de querer tudo isso não só para si próprio, mas para
todos os seres.
Nessa motivação jamais pensamos em causar mal aos
outros ou obter benefício próprio a custa de sofrimento dos outros. A
princípio apenas queremos a felicidade para nós e nos afastar do
sofrimento, é o primeiro ponto e realmente é muito difícil.
FelicidadeAprofundando
o conceito de felicidade, podemos dividi-lo em dois grupos. A
felicidade que está na dependência de fatores transitórios, e a
experiência de felicidade estável que está além das construções. O
segredo da motivação budista quanto a felicidade é buscar a segunda
opção, por razões óbvias. A felicidade transitória obtemos hoje, amanhã
se torna sofrimento.
Há um casal se separando, porque acontece? É
muito doloroso. Eles se amavam e tinham uma conexão, uma casa bonita,
dois filhos, uma porção de coisas funcionando e produzindo felicidade.
Na separação, cada uma dessas coisas vira elemento de sofrimento,
filhos, amigos, conta bancária. Se ficam com um, se dividem, se ficam
com o outro, em todos os casos sofrimento. Tudo que a pessoa tem vira
ponto de sofrimento, isso é a roda da vida, a felicidade na dependência
de condições. Quando a roda gira, e estamos embaixo, tudo que causava
felicidade traz agora sofrimento. Assim vemos inúmeras situações. A
pessoa funda uma empresa, tem um sócio, todos fazem aquilo crescer, num
certo momento as diferenças causam a separação. O amigo era solidez,
agora é apenas inimigo. Se a empresa fica na mão do outro, ele deseja
que ela afunde. "Ele está usando minha energia vital, não é justo".
Centenas de casos como este.
Assim é a roda da vida. Não é que
aconteça só conosco ou só com os outros - não é uma crise pessoal - a
roda da vida é simplesmente assim. Quando isso acontece conosco, o
melhor que temos a fazer é rir, "de novo a mesma coisa". Se quisermos
satanizar o outro, isso não fica muito bem. Por pior que seja, melhor
rir. Seria uma ingenuidade raciocinar em termos de contraposição. Por
isso dizemos que quando pensamos em felicidade estável em dependência de
fatores externos, é ingenuidade. Buscamos aquilo que está além das
construções. Com isso cobrimos os dois primeiros itens, motivação e
felicidade.
Caminho EspiritualAqui sete formas breves de descrever o caminho espiritual:
1. Se alguém pergunta o que é o caminho budista, dizemos que é o Nobre Caminho de Oito Passos. Essa resposta é completa.
2.
Se quisermos explicar de outra maneira, podemos dizer que é a remoção
dos obstáculos que criam a experiência cíclica. Essa experiência é o que
cria o aspecto de solidez do que vemos. No entanto sempre estivemos
livres da experiência cíclica, da mesma forma que a tela do cinema está
naturalmente livre das explosões que exibe.
3. Podemos colocar
isso de forma mais direta, a natureza de nossa mente já é perfeitamente
luminosa e livre. Então o caminho budista é o caminho que descortina a
natureza de nossa mente como luminosa, leve, livre. É o caminho que nada
adiciona, que nada cria, nada treina, e nada estabiliza. Dito assim
pode parecer estranho, sempre nos pareceu que estivemos treinando,
estabilizando, etc. O que fazemos na verdade é criar uma espécie de
"veículo de praticante", e esse veículo vai ser abandonado mais tarde.
Com nosso veículo usual ordinário, em geral não atingimos a liberação.
No
meio do filme nos tornamos Charles Bronson, então alguém argumenta que
você pelo menos tem raivas justas, estando na forma de Charles Bronson. O
caso é que não achamos justo sentir nenhum tipo de raiva, mas
inevitavelmente acabamos operando dentro daquela lógica. Por essa razão
criamos um elemento transitório. Não negamos a coerência daquilo, faz
parte de ajudar os outros seres perceber a coerência com que eles agem.
Só que é indispensável perceber que essa coerência é construída, que
existe uma liberdade adicional. Se negamos a coerência com que os outros
estão atuando, a retiramos o chão de seus pés. Por essa razão devemos
evitar a visão filosófica. Ela tenta estabelecer uma nova visão, mas
isso apenas polariza o processo. O melhor é dizer que o ser está certo
mas perceber que existem alternativas. Nossa habilidade é reconhecer a
liberdade dos outros.
Esses são os vários corolários do caminho
espiritual, várias formas de descrever o processo. "Basta remover as
construções sobrepostas, dissolver uma por uma as transitoriedades".
Esse processo é dramático, as realidades se sustentam dessa forma.
4.
Outra forma de explicar é como o caminho de tranqüilizar a mente.
Normalmente ela apenas pula incessantemente de um lugar para outro,
interrompendo esse processo de giro ela retoma seu ponto de equilíbrio
natural. A mente não é um processo estável, quase sempre está ligada ao
processo do galo.
5. Outra forma de explicar o caminho inteiro é
dizer que é uma purificação de corpo, fala e mente, até que se tornem
corpo vajra, fala vajra e mente vajra. O corpo, fala e mente então
manifestam os três corpos da iluminação, nirmanakaya, sambhogakaya e
Darmakaya.
6. Garab Dorje, o primeiro guru humano da linhagem
nyingma diz, "o caminho inteiro tem três etapas, na primeira etapa
ouvimos e geramos a visão, depois meditamos com o poder da visão, e
então, tendo liberado os obstáculos agimos de forma livre para benefício
de todos os seres." Podemos explicar o caminho budista dessa forma:
ouvir, meditar e agir.
7. Outra forma ainda baseia-se em quatro
etapas de treinamento da mente que fazemos incessantemente. Pensamos nos
ensinamentos, contemplamos nossa vida, ações e objetos mentais sobre o
ponto desses ensinamentos, meditamos focando as coisas a partir da
natureza não-construída, e finalmente dissolvemos as aparências e nos
liberamos da aparência condicionada que as coisas manifestam.
Essas
são várias formas de visão do caminho inteiro. Isso completa a terceira
parte desse sobrevôo da visão pelo caminho Mahayana.
Roteiro de PráticaA
prática em si é aqui proposta em 23 etapas sucessivas. O objetivo deste
roteiro é facilitar a visão e a prática do caminho. Outras formas de
organização podem ser propostas. A presente abordagem toma a
tranqüilização e a lucidez como os instrumentos básicos da busca a
liberação da experiência da roda da vida. O método básico é a meditação
sentada e a prática na vida cotidiana, de tal modo que progressivamente
não haja mais diferença entre a experiência da meditação e as
experiências anteriores e posteriores.
As primeiras três são
etapas de tranqüilização. O objetivo é desenvolver uma estabilidade que
nos permita olhar a realidade, que nos torne menos reativos. Se
estivermos muito reativos, muito acelerados, apenas reagimos e não há
possibilidade de qualquer sabedoria. Essas etapas são para que saibamos
que podemos respirar e estabilizar corpo, fala e mente. Sem isso não há
qualquer possibilidade de dirigir o processo, não há como colocar um
veículo de sabedoria no nosso caminho. Nesse ponto, e mesmo antes disso,
precisamos daquele que vai caminhar, aquele que vai gerar
tranqüilidade, aquele que está dominado por uma instabilidade.
Então,
na quarta etapa, seguimos um grupo de atividades que vai até a décima
primeira etapa, nesse intervalo trabalhamos purificando a motivação.
Pensamos, contemplamos, meditamos e repousamos a mente, fazemos isso
incessantemente. Com esse processo conseguimos enfim gerar a motivação
correta. Acalmamos a mente com as primeiras três etapas, e com essa
lucidez podemos avaliar a verdadeira circunstância da nossa experiência
cíclica.
A princípio estamos completamente imersos na
experiência cíclica, então, usando essa mente mais calma, examinando
conscientemente os processos internos com base nessa artificialidade,
usamos essa tranqüilidade, ainda que pouca, para examinar profundamente
nossa experiência cíclica. Vamos lembrar que existe alguém que nos ajuda
nesse processo, que existem ensinamentos, que há seres que passaram por
isso, que geraram uma lucidez que se mantém viva geração após geração.
Então examinamos que nosso corpo humano é precioso, que dispomos de
condições muito favoráveis, sendo que a maior é que o Buda veio, pregou o
Darma e os ensinamentos sobreviveram, então nós estamos em condições de
praticar esses ensinamentos. O fato de virmos como seres humanos
possibilita esse acesso. Esses ensinamentos são raros e quase
inexplicáveis, eles são transcendentes mas se manifestam no mundo
condicionado, há uma magia nisso. Então reconhecemos que temos condições
humanas perfeitas, que podemos acessar isso, e reconhecemos que nossa
vida pode ser tocada pelas bênçãos dos Budas. Podemos ter a experiência
de uma vida realmente preciosa. Isso diz respeito aos fatores positivos
de que dispomos. Em cada um desses casos, ouvimos, pensamos,
reconhecemos e examinamos se estamos conscientes disso enquanto agimos
no mundo.
Então, na nona etapa, reconhecemos que estamos sobre o
domínio da impermanência, que todos esses fatores positivos são
transitórios e podem acabar a qualquer momento.
Na décima etapa,
reconhecemos que ainda que tenhamos ouvido ensinamentos, ainda que
estejamos tranqüilizando a mente, reduzido o fluxo dos pensamentos,
ainda que ouçamos ensinamentos freqüentemente, ainda assim o carma nos
domina. Estamos a mercê dele, a mercê de impulsos.
Então surge a
décima primeira etapa. Ela é a compreensão de que a dependência a
fatores produz sofrimento inevitável, a dependência a esses impulsos
cármicos inevitavelmente produz um sofrimento, seja esse carma
aparentemente positivo ou negativo. A experiência de sofrimento é
inevitável. Ela se traduz como vedanas ou como jana-marana, ou ainda
como jeti, que são as circunstâncias da vida em que nos sentimos
aprisionados. (roda da vida)
Se realmente ouvimos, pensamos,
contemplamos nossa vida de acordo com essas etapas, quando chegamos na
décima primeira surge uma decisão, que é tomar refúgio na natureza
não-construída. Queremos enfim nos afastar de tudo que tenha a ver com a
experiência cíclica. Então nos refugiamos no Buda, no Darma e na Sanga.
Entendemos o significado disso, ouvimos a respeito longamente,
contemplamos, estabilizamos isso, e enfim repousamos novamente. Fazemos
isso com cada um dos três refúgios. Conscientes do que isso significa,
tomamos essa decisão. Tomamos refúgio na própria natureza
não-construída, representada pelo Buda, nos ensinamentos que brotam
dessa natureza e geram liberdade com relação às construções.
Os
médicos e enfermeiros não rejeitam a doença. Eles desenvolvem meios de
superar essa aversão comum. Eles têm apego, não conseguem ver alguém
doente que já vão atrás. "Não se mate, não se jogue pela janela". Esse é
um ponto muito importante, não nos afastamos do samsara no sentido
"vade retro samsara", apenas geramos uma liberdade com relação a este
processo. Não é uma aversão. Há uma liberdade, os médicos andam pelo
meio da doença. O objetivo é ganhar uma estabilidade que está além das
doenças, para ser capaz movimentar-se nesse âmbito sem desconforto.
Então
surge todo tipo de especulação, "qual a profecia budista para a nova
era? Ser abduzido por extraterrestres?". Na visão budista fazemos o voto
de ser o último a ser evacuado. Os outros seres fazem o voto de serem
os primeiros. Se enxergam desgraça, fogem. Todos os seres que têm
treinamento, têm uma consciência além das desgraças. Os praticantes
budistas fazem esse voto, o Dalai Lama disse que enquanto houver espaço,
ele retorna para benefício dos seres.
O importante é colocar a
motivação correta na compreensão deste tema. A desgraça acontece, não
importa se o ano acaba ou se passa um astro destruidor. No mundo
atualmente morrem 10 milhões a cada ano. Não precisamos mais desgraça
nenhuma. Considerando que cada homem casa em média com 2 mulheres,
sempre vai haver alguma desgraça envolvida... Calculem o número de
namoradas então, é como luzes que se apagam e acendem num grande
painel... Vejam como é vasto o mundo onde os lamas têm que atuar..., 6
bilhões de seres com poucas chances. A situação é gravíssima.
Com
estas etapas concluídas as três seguintes estão engatilhadas. Quando
chegamos ao ponto de tomar os três refúgios, então naturalmente vamos
entender a décima quinta etapa. É importante examinarmos o que nos leva
aos impulsos das ações não-virtuosas de mente. Se estão desenraizadas,
isso significa que os três refúgios estão completos. As quatro ações de
fala também são um controle de qualidade. Se os refúgios foram feitos de
fato, essas ações não-virtuosas de corpo, fala e mente não brotam. Até a
décima quarta etapa estamos ainda no primeiro passo do Nobre Caminho de
Oito Passos ensinado pelo Buda. Para percebermos como esse estudo é
vasto, não foram descritos especificamente os seis reinos, os doze elos,
os três animais - todos estes elementos estão dentro da décima etapa
(onde examinamos o carma).
Então, ao concluirmos a décima sétima
etapa, e a quarta do Nobre Caminho de Oito Passos, surge uma coisa
extraordinária. O primeiro elemento realmente transcendente. Finalmente
eliminamos todos os elementos artificiais de segurança que geramos
através da experiência cíclica. As ações não-virtuosas têm sido nosso
elemento de segurança - quando as coisas vão mal, ou matamos ou roubamos
ou temos má-vontade. São os instrumentos que a temos para nos
movimentarmos condicionadamente na experiência cíclica. Quando abdicamos
disso, estamos nus, completamente expostos, sem defesas.
Neste
ponto ouvimos sobre a fé, sobre a natureza não-construída. Abdicamos de
tudo aquilo que está baseado num elemento de vitória e derrota. Estamos
como num mato cheio de espinhos com a pele nua, nesse momento nos
abrimos para a experiência transcendente do Buda. Vivemos enfim além da
experiência cíclica, e nesse momento surge uma estabilidade
inexplicável. A serenidade daquilo que é como é, não como um elemento de
força. É imune a uma percepção particular, imune a todas as
atribulações impermanentes. É como perceber que a tela não explode com
as explosões do filme.
Neste ponto estamos sempre em meditação.
Nesse momento já temos estabilidade na dissolução das aparências
invasivas. Existem elementos externos que fazem parte desse processo.
Nessa etapa ainda existe uma fé mesclada com uma liberdade, há uma
sensação de abandono e fragilidade. É como a certeza de um ser muito
frágil que olha no olho do outro muito maior, e não sabe como, mas não
tem medo de ser amassado. Se for, não tem importância, o ser não é mais
forte que a verdade que anima aquele pequeno ser. A pessoa simplesmente
não recua, não penetra nas 10 ações não-virtuosas. Porém sua fé não
elimina a sensação de ser destruída, ainda há um vínculo com uma
existência individual. O ser é uma espécie de santo irado e exaltado.
Exaltação é uma boa palavra, os terapeutas olhariam e mandariam tomar
algum remédio... A pessoa não olha para o tamanho do problema, ela tem
uma firmeza inabalável.
Um exemplo que me ocorre é do zen
budismo. Não pensem que só os mosteiros de hoje tem problemas. Certa vez
uma monja muito linda num mosteiro no Japão, não sei bem como, mas era
um mosteiro misto, despertou os ventos de um dos monges. Sabe-se lá o
que ele falou para ela. Ele vivia insistindo, e a monja completamente
serena. Um dia ela entra nua, numa sala cheia de monges meditando, e diz
para o tal rapaz "aqui você tem o que pediu."
É uma certeza que
cruza qualquer barreira. Ela ainda tinha uma consciência individual, uma
sensação de ganho ou perda, mas o outro não pode fazer nada, porque não
há medo de qualquer tipo. Mas a sensação de vitória está presente, a
décima oitava etapa é uma confiança ilimitada. Essa confiança é o que
enfim permite a experiência de uma existência além das identidades, além
de ganhos e perdas.
Como poderíamos acessar essa região? Nas
etapas subseqüentes ela se purifica, mas a princípio nos perguntamos o
que nos permite a experiência de estar vivos, o que nos dá a sensação de
vida. Isso não está na dependência de uma identidade. Quando percebemos
isso, dizemos "sempre foi assim, nunca foi diferente". E essa é uma
característica da liberação. Temos a sensação de que sempre foi assim. É
diferente de uma experiência de construção. "Nunca tinha sido assim,
que loucura, ufa, até que enfim, que alívio agora", quando dizemos isso,
é uma garantia de que estamos num estado particular, não na liberação.
Se for algo que se consegue, eventualmente vamos perder. A liberação não
é assim. Quando dizemos "ah! Sempre tive isso e nunca tinha visto",
então sim talvez seja uma experiência verdadeira.
Enfim
descobrimos que compaixão, amor, alegria, equanimidade, são qualidades
transcendentes. São qualidades que se manifestam transcendendo a
identidade. Isso só é possível porque há dezoito etapas anteriores,
subdivididas. Essas quatro qualidades são como refulgências da natureza
não-construída.
Quando as quatro qualidades incomensuráveis
surgem, o aspecto mais importante é que são transcendentes, correspondem
ao décimo nono item deste roteiro de meditação. São qualidades que não
podem ser praticadas dentro de uma identidade, por isso elas se
manifestam dessa forma.
Recapitulando, estamos no quinto passo
do Nobre Caminho. O primeiro vai até o terceiro item, o segundo vai até o
décimo primeiro item, o terceiro até o décimo quarto, o quarto até o
décimo sétimo, o quinto até o vigésimo item deste roteiro.
A
vigésima etapa trata de seis caminhos transcendentes. São práticas que
só são possíveis enquanto não são praticadas por um alguém. Estão de
fato além de alguém e outro, por isso chamam-se "paramitas", elas nos
levam em direção à margem da liberação. Se uma identidade, ainda que
mínima, está na prática dessas virtudes, elas não poderiam ser chamadas
"paramitas". As qualidades incomensuráveis, como a compaixão, por
exemplo, já são uma manifestação além das identidades. A existência
delas é maior do que uma identidade, e assim também é com as paramitas.
Não é que o Buda beneficie os seres, ele não vê separação entre ele e os
seres, a mente dele não é local.
A experiência maior não
aconteceu ainda. Ainda há alguma solidez nesse processo. Então surge a
vigésima primeira etapa, o Buda senta sob a árvore, e essa estabilidade
não é apenas de corpo, é relacionada com o "corpo ampliado", digamos
assim. Em nossa experiência ordinária de corpo, sentimos algo que nos
cutuca e nossa mente opera, estamos centrados nessa experiência. Esse é o
limite da mente que opera através dos sentidos.
Livres dos
sentidos, podemos adivinhar coisas para frente e para trás no tempo.
Essa é a característica da liberação. Sempre tivemos essa
característica. Pensamos "minha filha está em casa, já é tarde, amanhã
tem prova". Nenhuma dessas conclusões pertence a natureza dos sentidos, a
aula de amanhã não é um som especial que ouvimos. Mas há um sentido de
plasticidade, no que seria o tempo e o espaço. Descobrimos que, de
acordo com esse movimento aparente, temos emoções, nos sentimos vivos,
temos propósitos, urgências. Isso não é local, nem depende de fatores
locais, não é geograficamente condicionado.
O que pacificamos e
estabilizamos já não é somente esse corpo biológico que vemos aqui.
Podemos usufruir da experiência não construída em cada elemento
construído. Primeiro reconhecemos a consistência dele como inseparável
de nós, o aspecto do próprio objeto como inseparável de nós. Normalmente
atribuímos significados automáticos quando permitimos o surgimento dos
objetos. E, contemplando assim, penetramos nessa 22a etapa, o último
bloco, na operação mental que surge junto com a percepção e
reconhecimento das aparências.
Entramos nessa prática para
perceber como se processam os processos de cognição. Temos 44 formas de
atribuições de significados. Essa etapa está descrita no "Sutra do
Coração". Aqui furamos o véu de Maya. Enfim entendemos o Buda quando ele
diz "ao abrir os olhos os seres fitam a névoa". Isto fica claro. Há
várias etapas dentro desse processo: rejeição da névoa, transcendência
da névoa ou pacificação da névoa. Em determinada etapa consideramos isso
a prisão, depois algo de que podemos nos livrar, depois pacificamos
reconhecendo-a como inseparável da natureza ilimitada, contemplamos com
um sorriso o processo todo. Isso nos habilita a quarta forma de lidar
com a névoa: retornar a ela para benefício dos seres. Vemos que isso é
um processo que sempre esteve presente, quando as "fichas caem", a gente
vê que isso sempre foi assim.
Na vigésima terceira etapa temos o
samma-samadhi, uma experiência de absorção na natureza ilimitada, livre
de quaisquer construções. É como se fosse a serenidade absoluta da
natureza não construída. Com relação a isso existe uma completa
liberação da individualidade, não há nenhum "eu" envolvido. Isso é
particular, o samsara cessou, quando Buda levanta ele volta aos olhos
que reconhece a natureza livre dos seres. É a liberação do carma. Na
vigésima Segunda, há uma discriminação completamente livre. O Buda
passeia por todos os mundos, vê os bodisatvas, ele se reconhece
inseparável, instantaneamente conectado com todos eles. Entendemos então
quando o Buda descreve que "todos os fenômenos manifestam o som do
Darma". Essa é a vigésima segunda etapa. Em samma-samadhi o Buda não
está mais num mundo olhando além das aparências, ele cessa a experiência
dos mundos. Mas ainda assim, mesmo sem perder a liberdade, ele retorna
para benefício dos seres.
Samma-samadhi é o nome técnico do
oitavo passo do Nobre Caminho, que corresponde à iluminação, a vigésimo
terceiro item deste roteiro, é Darmakaya. Os Budas com essa visão
ilimitada manifestam-se nos vários mundos particulares. A partir de
Darmakaya incessantemente surgem os corpos da iluminação. Na vigésima
terceira etapa ele não vê os seres de forma separativa. Então ele emana
os corpos inseparáveis da iluminação. Não gera Sambhogakaya porque há
uma "perda de qualidade", isso se dá porque nesse momento a forma é
pura. Os Budas estão fora da roda da vida, eles não estão jogando nenhum
jogo, ainda que suas formas surjam. A forma normalmente gera impulsos,
ao estilo da cobra e do galo, e então temos consciências separadas de
todas as coisas. Essas são as três experiências correspondentes à roda
da vida. Os Budas estão livres dos três animais.
De fato a
própria experiência da "mente" cessa na vigésima segunda etapa, ela
normalmente opera inseparável do galo, exige uma operação conjunta com a
percepção condicionada automática. A natureza mais sutil do galo é a
percepção. Quando vemos A, B surge ao lado. Quando vemos qualquer
objeto, dizemos "eu gosto daquela cor", e, do processo de percepção
brotam os ventos correspondentes. Na vigésima terceira não há mais
nenhum, para que ele exista é necessário algum tipo de apego. O processo
separativo em si já cessou a mais tempo, desde a décima oitava etapa.
Mas ainda resta um apego aos objetos. Quando ele é elucidado, há um
processo automático de revelação de significados. A mente, aquilo que
opera até a décima oitava etapa, aqui entra na etapa de dissolução.
A
iluminação é a nossa condição natural, se é da mente, então temos que
usar a palavra "mente" num outro sentido. Mas a natureza última existe,
do contrário criamos uma outra dualidade. A mente é uma expressão da
natureza última, mas essa experiência convencional de mente que nós
temos inevitavelmente vai cessar. Essa experiência está na dependência
de um personagem que joga um jogo. Dentro da compaixão a mente ainda
opera, mas há um ponto em que ela não mais vai operar mas segue a
natureza ilimitada que gera os inúmeros mundos. O Buda manifestou-se
através disso. Ele se utilizou de um corpo. Quando a morte chega ele diz
"eu não vim e eu não vou". Todo mundo entende um Buda que veio, ele diz
"vim para um mundo de sonho pregar um Darma de sonho para seres de
sonho". Ele sempre possuiu a percepção ilimitada, ele sempre foi
Darmakaya. Mas os seres mantém uma noção geográfica, ele nasceu ali e
fez tais e tais coisas, e as pessoas só conseguem ver dessa forma, o
que, em si mesmo é um milagre, ele ter surgido historicamente!
Aquilo
que pensa, esquadrinha, precisa de elementos sólidos. Quando eles não
surgem mais, resta a mente ilimitada. Essa natureza é poderosa no
sentido de que pode gerar os próprios processos limitados, a natureza de
Darmakaya é liberdade.
É bonito ver como de descreve o surge o
corpo humano no ensinamentos vajrayana, no princípio ele é auto-gerado,
ele se desloca através das montanhas, ele é além da geografia. Ele é o
aspecto mais sutil da nossa identidade, e ela é auto-surgida, é
translúcida. Ela se desloca, e depois vai agregando elementos que vão
solidificando esse processo, e camada por camada surge essa aparência
que temos agora. Quando de Darmakaya começam a surgir as formas, elas
não se estabelecem com ossos e células, mas quando olhamos isso mais de
perto, vemos que ela nunca se dissolveu para dar lugar a carne e ossos,
ela é ainda etérea hoje. Então podemos perceber essa característica:
segue operando e segue se estruturando. Da mesma maneira que um
casamento se estrutura, com um carro, uma casa, um papel, famílias que
se entrelaçam, isso cria uma solidez. Tudo começou quando um olhou para o
outro no banco escolar. Se na semana seguinte ela tivesse adoecido e
não tivesse aparecido na aula, não haveria casamento.
Quando
recitamos "gate gate paragate parasamgate bodhi soha", estamos
expressando a ultrapassagem do véu. Sem ultrapassar o véu não há como.
Ele representa o "Sutra do Coração", que libera isso tudo. Sem isso o
processo segue, a mente pode ser mais ampla, mas ela é a mente, "gate
gate" corresponde ao cruzar o rio, por isso ele é considerado o
maha-mantra, o mantra que não tem nenhuma construção. Por isso os
bodisatvas-mahasatvas não tem medo, eles repousam além das construções. O
"Sutra do Coração" é assim chamado porque é o cerne da sabedoria
transcendental revelado através dos 44 itens de contemplação apontados
no sutra. Vemos lá que "forma é vazio, vazio é forma, forma nada mais é
do que vazio", e assim por diante com morte, iluminação, um por um
desses itens. Cada um deles tem 4 aspectos que tem que ser reconhecidos,
então multiplicamos e temos 176 pontos de contemplação. Vendo isso
entendemos porque Asanga ficou doze anos em retiro, porque Bodidarma
ficou 9 anos diante de uma parede e porque o próprio Buda praticou por
seis anos em reclusão na floresta.