Não há um único ser senciente que, durante o curso de nossas vidas passadas, não tenha sido nossa mãe ou nosso pai, e que não tenha nos tratado com enorme bondade. Ao invés de discriminá-los, então, entre inimigos e amados, deveria ser bem natural que nós tivéssemos o mesmo sentimento de amor por todos os seres, assim como temos pelos nossos pais nesta vida. Cada um deles, sem exceção, deseja apenas encontrar felicidade, e mesmo assim, cegados pela ignorância, eles falham em reconhecer que a verdadeira causa dessa felicidade é realizar o Dharma. Igualmente, não há um único deles que queira sofrer, mas eles não reconhecem que a própria causa de seu sofrimento são as ações negativas. Simplesmente refletir sobre isto fará uma grande onda de compaixão surgir dentro de nossas mentes.
Entretanto, um mero sentimento de compaixão em si mesmo não é suficiente para ajudar todos os seres a realmente alcançarem o nível supremo da iluminação. Bem agora, obtivemos este precioso corpo humano, encontramos um Lama qualificado e, por recebermos suas instruções, atravessamos o limiar do Dharma. Então nos encontramos em um ponto crítico — podemos ir tanto para cima quanto para baixo. Nossa principal motivação agora deve ser o desejo de estabelecer todos os seres na iluminação completa. Mas, ao mesmo tempo, precisamos reconhecer que no presente simplesmente não possuímos a habilidade de liberar os seres do samsara. Portanto é essencial que nós primeiro aperfeiçoemos nosso potencial interior, junto com todas as suas qualidades. É com este tipo de atitude suprema — voltada para o benefício de todos os seres sencientes — que devemos nos empenhar com toda nossa força para receber os ensinamentos, refletir sobre eles e colocá-los em prática.
Que prática podemos fazer, então, para liberar todos os seres, para levá-los ao mais elevado nível de iluminação? No momento, temos este preciosíssimo corpo humano, que não é apenas um corpo físico comum, mas sim o suporte perfeito. Ele é dotado com as oito liberdades em relação às condições desfavoráveis e com as dez vantagens ou condições favoráveis, e então é conhecido como o "corpo humano que é como uma jóia". É isto que nos dá liberdade para praticarmos o Dharma.
Porém, ter este corpo não é, por si mesmo, suficiente. Precisamos usá-lo continuamente para praticar o Dharma, pois a morte pode golpeá-lo a qualquer momento. Um fato que precisamos realizar é como todos os fenômenos — tanto o universo exterior quanto todos os seres dentro dele — são completamente impermanentes. Eles passam como um clarão ou um relâmpago atravessando o céu, ou como uma cachoeira descendo, sem pausar nem por um instante. Assim como o universo exterior muda com a passagem das estações, de manhã à noite, de momento a momento, o mesmo é verdade para os seres humanos. Diz-se nos sutras:
O que quer que nasça vai morrer,
O que quer que se reuna vai se dispersar,
O que quer que se junte vai se separar,
O que quer que se eleve vai cair.
É por isto que devemos aproveitar agora a oportunidade desta vida humana, praticando para atingir a iluminação, ao invés de desperdiçá-la ao nos emaranharmos em afazeres e preocupações mundanas, sempre procurando sobrepujar nossos inimigos e proteger nossos parentes, ou procurando cuidar de nossos negócios, terras e propriedades. Lá estaremos, engrossados em todas estas atividades, quando subitamente a morte nos golpear. Então será muito tarde para praticar o Dharma.
Por mais belo que seja, você nunca irá seduzir o senhor da morte. Por mais rico que seja, você nunca poderá comprar nem mesmo um momento de vida. Por mais poder e influência que você exerça, toda a sua riqueza e atingimentos mundanos serão completamente inúteis no final. Apenas o Dharma poderá ajudá-lo no momento da morte.
Apesar de este ser um ponto crucial, simplesmente se lembrar da morte não é suficiente; agora, que temos boa saúde e liberdade tanto no corpo quanto na mente, precisamos canalizar nossa energia para praticar o Dharma. Devemos verificar, dia após dia, se não estamos gastando nossas vidas e que estamos fazendo cada esforço para misturar o Dharma — as instruções inestimáveis do Lama — com nosso fluxo mental.
Se formos capazes de fazer isto e se formos o melhor tipo de praticante, então na hora da morte devemos estar livres de todo medo e reconhecer o dharmakaya, a natureza absoluta. Se formos praticantes medianos, devemos ter a confiança de saber que não seremos deludidos por qualquer um dos fenômenos que aparecem no estado do bardo, e que então seremos capazes de atingir a iluminação. Se formos do tipo mais comum de praticante, pelo menos estaremos livre do arrependimento porque estaremos confiantes de termos feito o melhor que pudermos para praticar o Dharma e portanto não renasceremos nos reinos inferiores, mas sim encontraremos o suporte que precisamos na próxima vida para continuar nossa prática do Dharma.
O que devemos realizar é que no momento da morte seremos arrancados desta vida como um fio de cabelo que é retirado de um pedaço de manteiga, deixando tudo para trás, incluindo este corpo que consideramos tão querido. A morte não é como um fogo que simplesmente se extingue, ou como a água que desaparece quando cai na terra seca. Haverá o renascimento, e este renascimento será condicionado pelas nossas ações positivas e negativas. Se acumulamos ações negativas, renasceremos nos reinos inferiores. Por mais que desejemos renascer nos reinos celestiais, a menos que tenhamos nos preparado acumulando ações positivas, isto será completamente impossível. Como é dito: "Não há resultado que tenhamos experienciado que não tenha sido criado por ações passadas, e não há uma única ação presente que não produzirá fruto." Então nunca devemos sentir desdém em acumular até mesmo a menor quantidade de mérito e virtude, porque os resultados podem ser enormes. Nem devemos pensar que, se nos permitirmos fazer apenas uma pequena ação negativa, ela será de pouco ou nenhum significado.
Seguindo um Lama autêntico e tendo recebido suas instruções, devemos diferenciar com grande cuidado o que deve ser evitado e o que deve ser adotado, realizando que as ações negativas são a própria causa de nossa vagueação incessante no samsara.
É por isto que precisamos assegurar que todas as nossas ações são governadas pelos três princípios nobres. O primeiro é a preparação, que é a geração de bodhichitta — o desejo de realizar quaisquer ações ou de realizar qualquer prática que possamos fazer para o benefício de todos os seres sencientes. Isto liga nossa prática com os supremos meios hábeis. O segundo é a prática real, que é a concentração unidirecionada, livre de qualquer apego. Isto faz com que nossa prática seja invulnerável aos obstáculos. O terceiro é a conclusão, a dedicação de todo nosso mérito pelo bem de todos os seres. Isto faz o mérito de nossa prática continuar a aumentar até a iluminação. O próprio modo mais elevado de se dedicar as ações meritórias e positivas é fazer isso pela iluminação de todos os seres.
Com estes três princípios nobres como nosso guia, devemos constantemente nos esforçar para cultivar a bondade. Podemos acumular todos os tipos de virtude ou mérito mundanos, que pode nos trazer resultados temporários como longa vida ou riqueza, mas uma dia o fruto de todo este mérito se exaurirá e mergulharemos mais uma vez nos reinos inferiores. Mesmo para os seguidores do veículo fundamental, os shravakas e os pratyekabuddhas, poderem se libertar do samsara, eles levam um tempo extremamente longo, muito éons de fato, para alcançarem o estado búddhico. Através do caminho supremo do Mahayana, o grande veículo dos bodhisattvas, podemos atingir o estado búddhico rapidamente, pelo benefício de todos os outros.
Se verdadeiramente quisermos encontrar liberdade deste oceano de sofrimento, nada poderia ser mais vital que procurar uma fonte de refúgio correta, universal e última. Mas primeiro precisamos reconhecer a natureza do samsara porque, até e a menos que realizemos que o samsara é totalmente permeado pelo sofrimento, um forte sentido de renúncia nunca surgirá em nossas mentes. Apenas continuaremos pensando que o samsara é agradável e o pensamento de querer escapar dele nunca nem mesmo ocorrerá para nós. É por isto que é tão importante refletir profundamente sobre o samsara e realizar que estamos presos nele como pessoas nos confins de uma prisão. Não há qualquer modo de um prisioneiro poder escapar por sua própria força, mas apenas apelando para a ajuda de alguém em uma posição de maior poder. Exatamente do mesmo modo, precisamos da ajuda de alguém que tenha ido além do samsara.
Podemos nos perguntar, "Quando o samsara começou?" Ninguém exceto um buddha onisciente poderia apontar e dizer, "Este é o início do samsara". A delusão perpetuada no oceano de sofrimento do samsara tem vindo desde uma infinita série de vidas e continuará por éons se não fizermos algo para remediá-la. Como o Buddha disse no Sutra da Atenção Plena:
Se fôssemos empilhar os membros de todos os insetos
Que foram nossas corpos nas vidas passadas,
Eles formariam uma montanha mais elevada que o monte Meru.
O que os seres comuns falhar em reconhecer é que o samsara é nada mais que sofrimento. Eles são como pessoas aflitas com uma condição no olho que as faz ver uma concha branca como sendo amarela. Por mais que olhem, ele nunca a verão como branca.
Três tipos principais de sofrimento prevalecem no samsara: o sofrimento sobre sofrimento, o sofrimento da mudança e o sofrimento que tudo permeia. "Sofrimento sobre sofrimento" é quando uma experiência de sofrimento vem em cima da outra. Um bom exemplo seria o sofrimento continuamente renovado que é suportado nos infernos e nos outros reinos inferiores. "O sofrimento da mudança" é a mudança e flutuação constantes que acontecem entre os estados passageiros de felicidade e sofrimento. Alegria, riqueza e fama podem vir ao nosso caminho mas nunca durarão. Digamos, por exemplo, que em um amável dia de verão nós vamos a um piquenique com nossos amigos. Em um momento estamos sentados sobre a grama, relaxados, despreocupados e contentes, e então subitamente somos picados por uma cobra. Este é o sofrimento da mudança. O "sofrimento que tudo permeia" indica que o sofrimento permeia o samsara em sua inteireza e está sempre latente dentro dele. Mesmo aqueles que estão absortos nos estados de profundo samadhi nos planos superiores da existência, como os seres celestiais sem forma, não podem escapar do sofrimento. Quando o seu karma e os frutos de sua concentração forem exauridos, eles cairão mais uma vez nos reinos inferiores, porque de seus venenos interiores não foram erradicados.
Que refúgio podemos buscar por proteção e liberdade em relação a este oceano de sofrimento? Os objetos de refúgio comuns, como montanhas, estrelas, forças naturais ou indivíduos poderosos, que não estão livres do samsara, não podem nos oferecer proteção permanente e universal. Eles podem apenas nos desapontar. A única fonte suprema e infalível de refúgio — aquela que é completamente livre de qualquer parcialidade, livre de todo apego ou rejeição, e que possui uma compaixão universal diante de todos os seres — são as Três Jóias: o Buddha, o Dharma e a Sangha.
O Buddha manifesta-se como os três kayas e as cinco sabedorias, que compreendem todas as qualidades de ter abandonado o que tinha de ser abandonado, e de ter realizado o que tinha de ser realizado. O Dharma é o ensinamento dado pelo Buddha, que mostra o caminho e conduz à cessação do sofrimento. A Sangha é a comunidade virtuosa, datada com todas as qualidades nobres do entendimento e da liberação.
No nível mais interno, as Três Jóias estão todas reunidas no mestre, ou Lama: seu corpo é a Sangha, sua fala é o Dharma e sua mente é o Buddha. Ele é como uma jóia que realiza desejos, a união infalível de todas as fontes de refúgio, sua natureza absoluta está além da mente intelectual. Lembrar do Lama é o mesmo que lembrar de todos os buddhas. É por isto que, se confiarmos totalmente nele, apenas isto já abraçará todo o significado e objetivo do refúgio.
Então, o principal caminho para a iluminação é a geração de bodhichitta. Até agora temos segregado inimigos e amigos, aqueles que queremos rejeitar e aqueles que queremos atrair. Mas agora devemos pensar que todos os seres, sem qualquer discriminação, como sendo como nossos próprios pais que têm nos mostrado a maior bondade. E se pararmos de pensar sobre o quão bons os nossos pais têm sido para nós — o quanto eles nos vestiram, nos alimentaram e devotaram todo o seu tempo para o nosso benefício e bem-estar — então nosso desejo e resposta naturais será apenas o de mostrar nossa gratidão.
Todos os seres querem atingir a felicidade e evitar o sofrimento, mas como não sabem como fazer isso, o que todos fazem é causar mais sofrimento para eles mesmos. Tudo o que fazem corre contra a realização de seus desejos. A fim de livrar todos eles do sofrimento e conduzi-los à iluminação, devemos não apenas fazer surgir um forte sentimento de compaixão por eles em nossas mentes, mas também devemos agir sobre ele e nos esforçar para colocá-lo em prática através das seis perfeições. As seis perfeições são: dar com generosidade, manter a disciplina, meditar sobre a paciência, esforçar-se com diligência, descansar em equanimidade e realizar o não-eu através da sabedoria do discernimento.
Apêndice
As oito condições desfavoráveis das quais estamos livres: [1] nascer no reino do inferno, [2] no reino dos fantasmas famintos, [3] no reino dos animais, [4] no reino dos deuses, [5] entre os bárbaros, [6] entre aqueles que têm visões errôneas, [7] em uma era na qual nenhum buddha veio, [8] sem todas as faculdades intactas.
As dez condições favoráveis ou vantagens: as cinco primeiras são intrínsecas — [1] nascer como um ser humano, [2] em uma terra onde o Dharma pode ser encontrado, [3] com todas as faculdades intactas, [4] sem um estilo de vida negativo e [5] com fé nas Três Jóias. As outras cinco são externas — [6] o Buddha veio, [7] ensinou o Dharma, [8] o Dharma ainda existe, [9] ele é praticado e [10] somos guiados por um mestre espiritual.
Dilgo Khyentse Rinpoche. Guru Yoga: according to the preliminary practice of Longchen Nyingtik: an oral teaching by Dilgo Khyentse Rinpoche. Traduzido por Matthieu Ricard; editado por Rigpa. Ithaca: Snow Lion, 1999. Pág. 21-27.